Há um navio muito bonito que passa o ano inteiro viajando os sete mares e entre o inverno e o resplandecer da primavera, aporta a bombordo de uma grande barragem, trazendo inúmeras cores, cultura e novidades. Ele é coberto de livros. Suas caldeiras são alimentadas com as letras em forma de poesia que, aos montes, impulsionam esse navegar. Suas altas chaminés sobejam alegria, bem-estar e uma energia genuína, enfeitando os corações e vivificando a alma.
Esse navio começou a ser construído há alguns anos por obra e arte de um grupo de escritoras que, alicerçadas na leitura e no conhecimento, deram início a encontros e saraus poéticos, azeitando esse labor com suas próprias experiências: umas pelos caminhos da leitura e escrita, outras pelo mister de lecionar, o viver em sala de aula. Unidas, iniciaram as bases bem sólidas: o calado com a força e o peso dos livros clássicos; nas junções, a nova literatura, fruto de homens e mulheres incansáveis que muito tem feito, muito tem escrito; as acomodações possuem o frescor e o aconchego de uma praça; na popa, luzes, microfones e o cenário mágico de uma feira literária e na proa, uma plateia com gente de todas as idades e de todos os recantos, ávidas pelo deslumbre que é a viagem na literatura e nas artes, é quando o navegar se confunde com o voar pelos céus em grandes asas de papel, deixando para trás coisas vãs e sentimentos que não edificam, sobretudo o obscurantismo, a censura e a ignorância.
Assim é a Feira Literária de Boqueirão-PB, a FLIBO, navio imaginário que nos provoca a navegar pelos mares do conhecimento e nos reúne – vindos de todos os recantos – nas fraudas da barragem do Boqueirão do Carnoió, de onde se vê o espelho d’água do Açude Epitácio Pessoa (O Boqueirão) como um mar, um oásis em meio ao semiárido. A Praça da Associação Boqueirãoense de Escritores (ABES) é o bastião, o farol, belo espetáculo da resistência cultural do Cariri, do Mundo-Sertão. Quando a Flibo surgiu, não existia nenhuma feira semelhante na Paraíba. Louvemos então a timoneira Mirtes Sulpino pela dedicação e por tão bem coordenar um evento que só cresce. O navio, que está sempre em construção, ano a ano vai montando em seu panteão os grandes nomes, homenageando a cada edição artistas da poesia e da escrita, cada vez mais atracando com âncoras que se alargam e ramificam no solo argiloso que circunda o Rio Paraíba, um rio de água quente, sonhos e poesia. Hoje, muitas outras cidades buscam essa viagem, inspiradas pelo navio da Flibo.
Na última semana (11 a 14/set) embarcamos para a décima viagem consecutiva, tive a companhia dos escritores Josemir Camilo (Pres. da Academia de Letras de Campina Grande), José Edmilson, Thélio e Savigny Farias. Presenciamos a homenagem de abertura ao homem das letras e das artes Bráulio Tavares, exaltação a cargo dos escritores Bruno Gaudêncio e João Matias. Também prestigiamos a mesa ‘Literatura de viagem’ com um descontraído e instrutivo bate papo entre os escritores Thélio Farias e Antônio Clarindo, donos de si e de suas viagens pelas ruas do mundo. Além disso, foram quatro dias intensos de palestras, oficinas, minicursos e atrações culturais, envolvendo a população, as escolas e os visitantes numa aproximação intuitiva, sensível e prazerosa.
A dificuldade em manter a tradição dessa viagem literária existe, ainda mais em tempos sombrios como o que vivemos, época onde estão quase ausentes o amor, a alegria de viver e a atenção com o próximo. A capitã dessa embarcação esbanja criatividade, inteligência e bem querer ao se buscar fazer muito com tão pouco. Após dez anos de história, há motivos suficientes para justificar um maciço apoio a esse fantástico projeto, não só pelos entes públicos como a iniciativa privada, sensibilidade que deve ser aflorada para que esses apoios culturais garantam que nas próximas temporadas, o navegar desse templo cultural seja calmo e tranquilo como em um mar de almirante, onde se desliza suavemente, quase se flutua, cumprindo suas metas e objetivos, evitando que se tome mares bravios com percalços nauseantes causados pela marulhada. É desse navegar por águas despossuídas que temo e é por isso que ano a ano estou presente, nem que seja como ouvinte. A última participação minha foi em dezessete; ao lado do amigo Josemir Camilo, falamos sobre o bicentenário da revolução republicana de 1817 e comparava seu pioneirismo à altivez de Boqueirão, só que com armas poéticas.
Como insistiu o general romano Pompeu: Navegar é preciso! E continuar navegando, resistindo, povoando o mundo com a bandeira da poesia, isso é viver, bem viver, que também é preciso.
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