EM UMA MANHÃ de domingo do dezembro que passou, fui até a esquina de minha rua comprar um frango assado. Ao sair de casa, com boné, máscara e besuntado de álcool setenta, não notei que estava prestes a chover. De repente, estava eu entre a churrasqueira do amigo Zé dos passarinhos e a cobertura de seu pequeno estabelecimento e uma chuva torrencial tomou conta de todos nós, inebriando a alma. Chuva do caju? Da manga? Aquelas tradicionais e tão esperadas chuvas de verão que costumam nos abençoar em dezembro. Olhando a água avexada descer pelo meio fio, sinto uma mão em meu ombro: – O sr. é o Professor Thomas não é? Sei que são muitos alunos, talvez não se lembre de mim, mas eu digo que passei no vestibular por conta do senhor. Não esqueço jamais as aulas sobre os índios Tarairiú, Cariri, sobre o massacre de Tracunhaém, que tanto foi importante para a colonização da Paraíba. E começou a narrar como foi o episódio para mim e alguns presentes. Confesso que me emocionei com todo o relato. Vou contar brevemente:
O Rio Tracunhaém, na atual região fronteiriça (PB/PE), foi palco de um interessante acontecimento da história da Paraíba. Ali, índios Potiguara trucidaram um engenho e todos os seus moradores, no que ficou conhecido como ‘Massacre de Tracunhaém’. Partindo de Olinda, um ‘mameluco aventureiro’ raptou uma cunhã (do Tupi: mulher jovem) de uma aldeia Potiguara tomando-lhe como esposa; aproveitando-se da relação amistosa e comercial entre brancos e aldeias da região da Copaoba (no norte da atual Paraíba). A raptada era Iratembé, filha do chefe indígena, o Ininguassú (çú) – hoje ele empresta seu nome a praça central do município de Serra da Raiz – que na oportunidade, enviou dois de seus filhos à Olinda para buscar a cunhã. Após expor o fato ao ‘Governante das Terras do Sul’ Antônio Salema (que estava em Olinda), tiveram o pedido atendido e Salema ainda deu provisão aos índios para não serem molestados no caminho. Chegando a Tracunhaém, os três filhos de Ininguaçú pernoitaram no engenho de Diogo Dias, que encantado com a moça, a ocultou de seus irmãos. Mesmo vendo a provisão de Salema, Dias desconversou e os irmãos retornaram à Copaoba, informando o sucedido.
Confiante na negociação, Ininguaçú enviara outros (não se sabe quantos) emissários para o intento, só que Dias dissimulava e envolvia-os com palavras enganosas. Neste momento, Ininguaçú resolve buscar sua filha “quebrando a paz”, e para o intento, milhares de índios se deslocaram para Tracunhaém, chegando em plena madrugada, esperando o amanhecer para pegar de assalto os moradores. Horácio de Almeida, em sua História da Paraíba (1978), afirma que este reclame indígena tenha sido fomentado pelos franceses, que por comercializar Pau-Brasil com os Potiguara, temiam o instinto colonizador do português. Aliás, esta é a opinião de historiadores como Irineu Pinto (1909) e Maximiano Machado (1912).
Diogo Dias, que possuía um fortim dentre um cercado de pau a pique, rechaçou um pequeno grupo, saindo para o campo aberto, indo de encontro a uma inúmera quantidade de índios que estavam à espreita, no mato, prontos para dominar a propriedade. Cercado pelos Potiguara, Diogo já não tinha lugar seguro para se abrigar e foi derrotado. Segundo Maximiano Machado, mais de 600 pessoas morreram no enfrentamento, dentre estes, índios domesticados, escravos, parentes e o próprio Diogo Dias; a propriedade foi saqueada e incendiada, ficando um ‘monte de ruínas’ como afirmou Almeida, o que assanhou os indígenas pela fácil e trucidante vitória.
O morticínio assustou a metrópole, que viu a ameaça indígena e francesa sob suas posses, determinando a criação da Capitania Real da Parahyba (no papel) em 1574 sendo determinante para a sua posterior conquista no acordo de paz em 05 de agosto de 1585 entre o capitão João Tavares e o chefe indígena Piragibe numa colina defronte ao rio Sanhauá, marco fundante da Paraíba. Tracunhaém mostrou o poderio nativo, uma resposta incisiva, que mudou os rumos da História do Brasil.
Pois bem, a emoção no relato daquele ex-aluno foi tamanha que conversamos até a pausa da chuva. Me disse que havia passado no vestibular para História na UEPB e abandonou a faculdade por ter perdido a mãe, o que fez sua vida desandar. O incentivei a voltar e ele prometeu fazer o próximo Enem e retomar a coisa mais gostosa de sua vida que é estudar. Lembro de muitos professores que marcaram minha existência, mas ser tratado dessa maneira, me faz ver o quanto valeu a pena. E lá se vão dezoito anos desde o meu primeiro dia de aula no Assta do inesquecível Frei Matias e suas missas tridentinas.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 05 de fevereiro de 2022.
Uma vez professor, sempre professor!
Parabéns pela missão assumida, parabéns pelo relato.