NADA MAIS QUE DIFERENTE, a caminho de casa, parei em um boteco para tomar uma “lapada” de cachaça envelhecida nos frios barris de madeira de um velho engenho lá no brejo de Areia; estava com água na boca. O barzinho fica no subúrbio, bem longe do centro, onde se pode observar de perto a pobreza e seus rudimentos em toda sua inteireza. E me pego espiando um conjunto disforme de casas que mais parecia ter sido construído de improviso. Pela movimentação, descubro que é um cortiço, morando a dona na casa de frente para a calçada e em volta dela casas dispostas com alguns pavimentos, um beco de acesso aos quartos traseiros, uns sem reboco, outros ainda no tijolo em uma harmonia própria e desconcertante.
Dou uma encostada com os lábios no copo, aprecio o cheiro etílico e meu olhar continua a observar. Em instantes, uma discussão bem acalorada entre vizinhos que compartilham a mesma lavanderia, uma toalha sumiu. Aliás, muita gente ali falava alto, alguns aos gritos. É quando desce do terceiro pavimento um balde içado por uma corda, segurando a ponta, uma senhora que com aquele auxílio, faz subir um pequeno saco entregue por uma moça. A casa de baixo onde a dona do “império” mora, possui uma grade que parte dela invade a calçada como se outrora fosse uma garagem, agora, dentro, duas prateleiras com cigarros, pipocas, doces; ao lado, uma meia dúzia de garrafões de água mineral, uns cheios, outros vazios, era uma venda para complementar a renda. Numa cadeira de balanço, um garoto atrapalhadinho se desmancha em gargalhadas como se achasse graça em tudo. Uma carroça de burro cheia de areia passando era motivo para risada. Junto a alguns gestos esquisitos e tantas risadas, descobri que o jovem tinha algum transtorno. Bom para ele que tudo se escondia por trás de sorrisos. E assim vai seguindo a vida.
Finalmente tomo o primeiro gole. Cachaça de primeira viu? Comento com o dono do bar ao mesmo tempo em que balanço circularmente o copo. O tom amadeirado dá um perfume e gosto bem especial. Na ponta da rua, subindo a ladeira, os garis cumpriam a árdua e tão importante função de apanhar o lixo disposto nas calçadas. Roupa grossa e luvas se faziam importantes para a salubridade daqueles dois trabalhadores, mas o sol, todo imperioso, transformava aqueles corpos em verdadeiras estufas. No pé da calçada do bar, o lixo dos últimos dois dias em sacos pretos era pego por um deles. Dou um caloroso bom dia – era por volta do meio-dia – e ele me responde com um pouco de espanto, parece que aquele ato não é corriqueiro. Ele cumprimentou. Ofereci-lhe guaraná, pedi que chamasse seu companheiro de corrida. O carro deu uma descidinha e os três se refrescaram rapidamente com aquele litro verde. O ar de contentamento dos três era tão grande que fazia gosto. Um deles me disse: “se todo muito fosse igual ao senhor, esse mundão era diferente. Além do refrigerante o senhor falou com a gente. Sabe o que a gente passa por aí? Parece que não é ninguém que tá atrás dessa farda, só porque a gente meche com lixo”. “Gente mal-educada rapaziada, liga não, vocês são essenciais para a cidade. Vê só, imagina uma greve de vocês por uma semana? A cidade para, nas rádios vão meter o pau no Prefeito... Vão na fé e sigam com Deus”, respondi.
Fiquei a refletir como a sociedade é injusta. Alguém formado em direito ou em medicina recebe fino trato em muitos lugares. “O doutor deseja alguma coisa?” e todo tipo de regalia é ofertada. Já um gari acaba sendo invisível na hipocrisia reinante numa realidade que, inclusive, não valoriza seus professores, mas essa é uma outra discussão. Voltemos àquela rua e ao curioso cortiço. Peço outra dose a Seu João, momento em que começa uma chuva fininha que vai engrossando e um corre-corre na casa vizinha denuncia uma goteira. Um morador do cortiço é logo acionado. Magrinho, de bigode, sobe no telhado sem quebrar uma só telha. É quando Seu João me diz quase no ouvido: “esse magro aí parece um gato no telhado, dizem que é um ladrão fino, a dona da casa não se cuide não... disseram que até cadeia já pegou”.
E assim continuei observando a simplicidade daquelas pessoas e como vivem sua humildade com arte e criatividade e jamais esquecerei o sorriso daquele gari ao saciar sua sede que não era só fisicamente, mas de reconhecimento.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 30 de março de 2024.
Uma garotinha disse ao pai: "Papai, lá vem o povo do lixo", se referindo ao carro de coleta, Não, disse o pai, o povo do lixo somos nós, eles são o povo da limpeza! Seria bom que todos tivessem essa consciência! Como sempre, uma excelente crônica Professor Thomas, parabéns!!!
Verdade mesmo professor Thomas, àqueles que fazem o serviço mais insalubre e essencial, são justamente os que são mal remunerados e se tornam invisíveis para a própria sociedade a que eles servem. Injustiça!