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TURISMO & HISTÓRIA

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Era apenas uma “deiton”

  • Foto do escritor: Thomas Bruno Oliveira
    Thomas Bruno Oliveira
  • 26 de ago.
  • 4 min de leitura

Papai no balcão da mercearia, a dayton ao seu lado esquerdo - TB
Papai no balcão da mercearia, a dayton ao seu lado esquerdo - TB

HOJE EU QUERO FALAR a história de uma velha balança que chamavam de deiton (Dayton). Essa era a fábrica daquele instrumento de pesar. Era “vremêia”, como dizia meu saudoso vizinho Manoel Bracim. Eu, guri, com meus oito ou nove anos, que não sabia muito dessas letras incorporadas ao nosso alfabeto daqueles tempos (nesse caso o “y”), não entendia direito e dava até um certo trabalho em ler. O “W”, eu sabia que era um “V” por conta de minha irmã 'Wanessa', mas na escola era usado como “U” por um colega chamado Wilson. Abecedário à parte, no balcão de uma sortida mercearia que papai tinha, lá estava a balança Dayton, pintada em um vermelho vívido em quase todo seu corpo.


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Esse tipo de balança era comum em bodegas dos bairros da cidade, não só um elemento de destaque, mas, talvez, o utensílio mais caro para aquele labutar. No alto, na carenagem arqueada, um ponteiro balançava entre 0 zero kg e 5 kg em uma espécie de quadrante, e a graduação aumentava a partir da mudança de posição de um cilindro robusto que proporcionava pesar até 15 kg de cinco em cinco. Logo abaixo desse ponteiro, havia um espelho bem redondo, mais brilhoso do que tinha no banheiro. Era por ele que eu dava uma última reparada no cabelo e arrumava os óculos antes de ir para a escola. Era também em seu reflexo que eu via quem chegava e se escorava no balcão da mercearia.


Havia uma base, um prato laminado e grosso, ali só poderia pôr as coisas para determinar seu volume, nada mais. Teve uma vez que eu levei um carão danado de seu Paulo Roberto, meu pai, porque botei em cima do prato umas garrafas. Estava eu a limpar uma prateleira e, com medo de quebrar os “cascos” de vidro, achei por bem repousar os litros na base da Dayton. A bronca era para que o ato indevido não desregulasse o bom funcionamento da “bichinha” e era caro chamar alguém para fazer o reparo. Como dizia meu bisavô Seu Zé Severino: "são de outros tempos...".


“A ‘deiton’ é apenas uma fotografia no álbum, mas como dói” - TB
“A ‘deiton’ é apenas uma fotografia no álbum, mas como dói” - TB

Aquela balança, muda, calada, vivia a observar o dia a dia de nossa rua. Cada vizinho que chegava e partia, cada poeira que o vento levantava, cada pipa que subia; ela testemunhava olhares, era confidente de amores e também de intrigas. Seu espelho, um olho com que ela tudo via. Como diz a encantadora canção atribuída a Villa-Lobos: “Se essa rua, se essa rua fosse minha...”, eu sou capaz de afirmar que a memorável Dayton era uma de suas personagens não menos importante. Lá no início de tudo, na primeira versão da mercearia, quando era apenas uma pequena bodega, ela vivia no balcão, a 1 m da calçada; exposta na porta, levando o sol que fazia com que suas peças ficassem ainda mais reluzentes. Ali também era a garantia de que a clientela conferisse de perto a carne de charque, sardinha à granel, mortadela, açúcar, feijão, tudo grama por grama. Tempos depois, a balança foi para um balcão menor, mais para os fundos, perto do freezer. O lugar ofertava mais espaço para enfileirar dois ou três fardos daqueles de 50 kg de feijão, açúcar, arroz e toda sorte de estivas. Muitas vezes eu quem pesei aqueles cereais e "sofria" demais...


A balança "gatilho" da lembrança na Feira da Prata, foi ela que acariciei - TB
A balança "gatilho" da lembrança na Feira da Prata, foi ela que acariciei - TB

Companhias graciosas de Pastor Pedrinho (Preto), meu Tio Calunga (boné), Cunha e Daniel Duarte (chapéu de vaqueiro) - TB


Domingo passado estive na Feira da Prata e, em sua feira de troca, vi uma balança parecida, só que de marca Filizola e sem os espelhos. Estava exposta em uma lona no asfalto da rua para quem passasse. Meus olhos brilharam. Fiquei comovido. Me agachei, a toquei devagar como se fizesse um carinho e fotografei. Revendo uma foto de Papai na mercearia ao lado dela e inspirado na confissão de Drummond de Andrade sobre sua Itabira (MG), pensei: a “deiton” é apenas uma fotografia no álbum, mas como dói.


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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 02 de agosto de 2025.


***

Confidência do Itabirano [Carlos Drummond de Andrade]*


Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.


A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!


[Sentimento do mundo]


1 comentário


SEBASTIAO HENRIQUE GONCALVES DOS SANTOS
SEBASTIAO HENRIQUE GONCALVES DOS SANTOS
07 de set.

Caro amigo e mestre Thomas. Me impressiona a escrita tão rica em detalhes que nos proporciona transportar-nos àqueles tempos, àquelas memórias vividas. Como sempre o digo, dominar as letras com tanta riqueza é um dom que Deus lhe deu, meu caro amigo-irmão

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O começo

Durante anos temos viajado por diversos lugares para o desempenho de pesquisas e também para o deleite do turismo de aventura. Como um observador do cotidiano, das potencialidades dos lugares e das pessoas, tenho escrito muitas dessas experiências de centros urbanos como também de suas serras, montanhas e rios. Isso ocasionou a inspiração de algumas pessoas na ajuda em dicas de viagem.
Em 2005, iniciamos uma série de crônicas e artigos no Jornal Diário da Borborema, em Campina Grande-PB e após anos, assino coluna nos jornais A União e no Contraponto. Com o compartilhamento das crônicas, amigos me encorajaram e finalmente decidi entrar nas redes.
Aqui estão minhas opiniões, paixões, meus pensamentos e questionamentos sobre os lugares e cotidiano. Fundei o Turismo & História com a missão de ser uma janela onde seja possível tocar as pessoas e mostrar um mundo que quase não se vê, num jornalismo literário que fuja do habitual. Aceita o desafio? Vamos lá!

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