Não fiz a primeira comunhão, mas fui batizado, evitando que me tornasse pagão. Na minha rua, não lembro de nenhum dos amigos ter oportunidade de desfrutar desse contato com a vida religiosa. Não sei se a distância de um quilômetro entre nossas casas e a igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro tenha nos apartado dessa liturgia, até porque havia o amedrontador matagal no fundo do vale recortado pelo riacho de Bodocongó com uma ponte estreita cheia de terra onde ônibus e carros passavam ligeiro, um risco eminente para qualquer pedestre, imagine para as crianças naquele tempo... íamos para a igreja quando alguém nos levava e pronto! Lembro até de ter frequentado algumas vezes uma igreja Batista, há alguns passos da esquina de nossa casa, com Mamãe e minha irmã, mas poucas vezes. A meninada era religiosa ao seu modo, rezar o Pai Nosso antes de dormir, agradecer a Deus as refeições e a saúde e respeitar os mais velhos, parar o jogo de bola quando passava um enterro, e por aí vai...
Enchia nossos olhos o culto católico. As novenas na rua no mês de maio, de casa em casa, onde uma moradora levava a cruz sagrada, todos empunhando velas acesas nas mãos, tudo causara curiosidade e encantamento em um rito pelas mulheres e os gestos e rezas repetidos pelas crianças. O Pai Nosso todos os garotos sabiam rezar, mas quem sabia recitar a Ave Maria, o fazia em tom mais alto e com uma plasticidade que chamava a atenção das mães que acenavam positivamente com a cabeça e também dos outros meninos, que eram tomados pela inveja, buscavam ali o reconhecimento, coisa de menino.
Das gavetas da memória jamais sumiram a cena de uma dessas novenas na casa da vizinha de frente, Rilene, que com sua mãe, a saudosa Dona Idalina (que nos deixou aos 102 anos) e sua filha Sone, recebia a vizinhança. E eu doido para segurar a vela, mas mamãe sem qualquer piedade não quis deixar. Eram tantas as pessoas que o terraço e a calçada de muro baixo foram ocupadas; o jardim exalava o perfume das rosas, adocicando o ar daquela noite. No fim, outra vizinha, a saudosa Lúcia, mãe de meu amigo Martiele, sai lentamente da casa empunhando a cruz sagrada no alto. Com feição séria e sob o silêncio de todos, só se escutava o arrastado de uma de suas chinelas em seu mancado característico. O vento gélido da noite mariana de Campina nos prostrava em reflexão, tinha absoluta certeza que Jesus e Maria estavam ali conosco. Dias depois, acompanhando Mamãe, integramos uma procissão que subia a rua oposta à nossa. Um copinho improvisado de papel impedia que a vela, ao centro, viesse a apagar. Na época era uma multidão, no olhar de hoje devia haver uns 120 fiéis. Fiquei tão encantado que passei a pedir aos meus pais para irmos à igreja, reclame atendido dias depois. Fui com Mamãe, meu pai ficou tomando conta da mercearia e da casa.
A pé, junto a algumas vizinhas, vencemos o caminho até a igreja. O matagal do riacho era sempre um desconhecido e muitas histórias saíram dali, umas não tão agradáveis. Subimos a Rua Carlos Alberto Souza e no oitão da igreja vi os gigantes eucaliptos que, enfileirados, faziam as honras da Fábrica Têxtil, defronte a igreja. Caminhando mais um pouco, vi o frontão alto encimado por uma cruz, o tom amarelo e arqueado da entrada não me sai da memória. A missa acabara de começar. Sentamos atrás. Fica de joelho, levanta, reza, canta, senta... cumpri à risca com um orgulho de um garoto entre cinco ou seis anos. Jesus em sangue na cruz me comoveu. Pinturas, santos e cada vez mais o ambiente se tornara familiar. O padre, já idoso, tinha voz bela e ao mesmo tempo firme.
Finda a celebração, após a saudação corriqueira, levei muitos cheiros e afagos, me separei de Mamãe e fui ao altar, tudo muito bonito. Por uma saída lateral, vi uma senhora acendendo velas em um suporte que flamejava; aquele cheiro de fogo, cera e fumaça só cristalizava o que pensara naquele momento: – Quero ser padre! Disse a Mamãe e a suas amigas, entre sorrisos e um balbuciar “– Tá certo meu filho...”.
No fim da tarde, estava com Papai na mercearia. Havia um bureau de madeira clara com a gaveta onde o dinheiro era guardado, ali papai escrevia, fazia as contas, era seu tabuleiro onde só não passava mais tempo que encostado ao balcão. Ali ele me chamou: – Bruno, senta aqui. E, ao seu lado, fui escutar o que queria me dizer. Foi uma conversa comprida onde falava e desenhava, discorria sobre a reprodução humana. Cá pra nós, eu já sabia de alguma coisa; Tia Giseuda me chamava de enxerido na escola... Parece que estou vendo tudo novamente, ao desenhar o aparelho reprodutor feminino, eu só achava aquilo parecido com a cabeça de uma vaca. No fim ele sentenciou: – Se quiser ser padre, não pode namorar!
Aquela informação era demais para mim. Arriscando uns beijinhos em minhas primas e nas coleguinhas do colégio, me vendo longe daquilo, comecei a chorar: – Ah Papai, não quero mais!!! E aos berros, corro para falar a Mamãe. A ingenuidade clara do tempo não diverge da de hoje, porém, a gurizada atual se entretém com avanços tecnológicos de forma que, involuntariamente, a educação dos pais no sentido religioso vai se escasseando. Benção Mamãe? Benção Papai?
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