O menino costumava se juntar com seus amiguinhos da rua para as garatujas e peripécias. Uma das habituais era se deitar na calçada de Dona Alice, onde havia uma rampa para entrada de automóveis, embora ela nunca tivesse adquirido um; lugar privilegiado para a observação do céu; ali cabiam todos: Tuca, Joel, Tião, Meu (Martiele), Robson e Bruno; e o que faziam estirados naquela calçada morna, de cimento, era observar os urubus. Ali especulavam qual estava mais alto, qual o mais vistoso, o mais ligeiro, e lá iam as explicações, explanações e discussões, como em uma banca infantil de estudos zoológicos, vê se pode!
De onde vinham tantos urubus? Eram dezenas! Em dias de muito sol, poderia afirmar que eram centenas. O céu azul era pincelado com a tinta negra daquelas aves, tinha alguns que de tão altos só se via um pontinho escuro encoberto por nuvens. Quem nasceu em Bodocongó se acostumou com a visão do céu povoada por urubus. O que parecia lúgubre, era encarado com naturalidade pelos moradores do lugar, já as crianças, miravam no voo daquelas aves e admiravam como planavam e pouco batiam asas. Eram nossos gaviões, falcões, não trocávamos os nossos urubus por nada. Mas de onde vinham? É que nas proximidades do Açude de Bodocongó existia um matadouro construído pela municipalidade na década de 1940 (bem afastado do centro, na saída para o sertão e cariri). Em estilo art-déco, possuía no frontão (em Bauhaus) o letreiro ‘MATADOVRO’, e essa era uma das indagações dos moleques que já sabiam ler, por que era matadovro ao invés de matadouro? Embora do nome pouco se importava, sabia-se que ali entrava muito gado em caminhões e as filas que venciam o portal e entravam no prédio, nem imaginavam seu triste destino. Com o abate, os bichinhos eram transformados em peças de carne para abastecer as nossas feiras livres e também, claro, farta comida para os agradáveis urubus.
Uma vez, Joel, um dos garotos mais velhos, entrou no matadouro e viu como ocorria o abate, juntou a “reca” de meninos para contar: numa espécie de corredor de cercas de madeira, era dado uma martelada na testa do animal que o fazia perder a consciência, ele tremia e gemia, logo após, o bichinho era sangrado e dependurado para os cortes dos mais nobres aos triviais. Um marchante, era assim que se chamava os trabalhadores de lá, morava em nossa rua: Luciano. A molecada chamava de Luciano “Hulk” exatamente porque ele tinha braços muito fortes, musculosos. Levantava dois de nós sentados em seu braço sem parecer estar fazendo qualquer esforço. Ele sempre chegava em casa com a roupa melada de sangue. Aquela tinta encarnada em suas vestes suscitava pensamentos dos mais diversos: quantos ele matou hoje? Os meninos viam aquilo, as vezes o seguiam até o matadouro para ver o que uma vez sua filha falou, que ele era forte porque tomava todos os dias um copo de sangue de boi cru. Não se sabia se era verdade, e esse era mais um dos mitos que povoavam a cabeça dos meninos. Tu quer ficar forte? Tem coragem de beber sangue? Nenhum quis!
Distante três quadras de nossa rua, não era sempre que dava para escapulir e ir ao matadouro, geralmente estávamos à distância do chamado dos pais, mas quando dava, íamos e éramos atraídos pelos urubus. Os fundos do matadouro não tinham muro, era um cercado e dali, mesmo a uma certa distância, era possível admirar os inúmeros urubus de asas abertas por cima de uma mureta, ali eles reinavam e ganhavam os céus. O cenário era composto pelas construções no alto da Bela Vista e cá em nossa observação a fileira de urubus de asas estendidas esperando as correntes de ar quente para o seu bailar, pareciam posar para fotografia. As vezes víamos alguns deles disputarem umas tiras, que na verdade eram as vísceras de gado que teriam sido desprezadas pelos marchantes.
Nessa área baldia dos fundos, vimos certa vez uma movimentação de um urubu que parecia estar escondendo algo, quando fomos ver eram dois urubuzinhos novos, branquinhos, como pode? Ao nos ver, eles começaram a “gofar”. Certa vez seu Januário disse que ofendia ver ninho de urubu e os filhotes se vissem humanos vomitavam até a morte.
Bruno! Bruno! Onde estava? Faz é tempo que eu chamo! – Tô aqui, fui ali na outra rua... e lá íamos novamente para a calçada de Dona Alice apreciar o bailar dos urubus e viajar no pensamento da altura daquelas aves.
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