Nesse dia de finados, flertando as inúmeras flores brancas que enfeitam o pequeno cemitério do distrito de Fagundes, em Lucena, formada por copas altas de Jasmim do Caribe (também conhecida como buquê-de-noiva), via o encontro do céu com o mar. Ao redor do campo santo, uma densa mata de restinga, própria daqueles arredores, altos coqueiros e na praia algumas caiçaras de pescadores. Passando pelo pequeno pórtico, algumas senhoras com jarros e flores em gesto de devoção. Era bem cedo, mas o sol se mostrava bem. Tomei o carro e aquela imagem do fervor religioso daquelas mulheres ficou em minha mente. Quanta reverência aos mortos.
Perdas enormes me tomaram a mente, imensos hiatos que ao passar dos tempos vamos tentando compensar escavacando as gavetas da memória, buscando amealhar afagos, dengos, cheiros, retratos em forma de recordações. Me veio a lembrança de Tio Joãozinho. Sua generosidade, seu carinho e a relação que tivemos. Ah, a ele tenho uma palavra não dita. Recordei do seu velório, de todo o ocorrido.
Tio Joãozinho é na verdade tio de Papai (meu tio-avô), mas assim como seus irmãos Nezinho, Pedrinho, Lourdinha, Nevinha e Zezé, eram tão presentes em minha vida que não havia um distanciamento. Também, meu Pai como sobrinho mais velho, viveu uma vida tendo-os como irmãos. Pois bem, a vivência que tive com Joãozinho foi acentuada a partir do fim de minha adolescência, ele que me mostrou o Mundo-Sertão, com ele fizemos viagens épicas, conhecemos cidades, nos deleitamos em inúmeras festas. Anos depois, seu filho, meu primo Felipe, passou a nos acompanhar pelo mundo. Morava em Recife, mas Campina era uma espécie de bairro vizinho. Na quinta ou sexta-feira, finzinho de tarde, ouvíamos o portão da garagem, era ele! A mala de seu carro tinha como passageiros ilustres um violão e uma caixa amplificada. Dormia em meu quarto. Ai que saudade!
Internado na uti em um hospital de Recife, apertei sua mão poucos dias antes de partir. Tem gente que não deveria morrer nunca! A energia que emanava, a dedicação aos amigos eram intensos. Tinha nele um pouquinho de pai, além de tio e sua partida foi muito dolorosa. Minha tia Lourdinha é quem estava cuidando dele, foi quem também cuidou de Nevinha, é um anjo devotado a seus irmãos e senti o quanto ficou abalada. Quando a noite abraçou nosso choro, ele chegou ao Parque das Flores, lá em Recife, onde já esperávamos. Após quase todos se despedirem, não tive coragem de deixar tia Lourdinha sem ter quem pudesse cuidá-la um pouco mais de perto e estar ali para qualquer necessidade. Era noite de quinta, o chiado da fechadura tilintou em minha mente...
Aquela noite foi enigmática, diferente, mística. A companhia de poucas pessoas e tantos túmulos, tantas flores, céu escuro e logo amanheceu. No início da sexta, pouco a pouco iam chegando uma multidão de parentes e amigos para a última homenagem. Fiquei encarregado de algumas obrigações, ir até a administração solicitar a abertura do túmulo, onde meu querido bisavô estava há onze anos e eu deveria acompanhar tudo até ficar pronto para o sepultamento. O administrador me pede para procurar uma funcionária que é a chefe dos coveiros. Vou ao seu encontro e demoro uns vinte minutos até que a descubro tomando café. Fiz o pedido, ela quis o número do túmulo. Descontraidamente ela olha aquele papel, vê aqueles quatro números, e ainda mastigando um pedaço de pão diz em voz alta: – hoje vou jogar na cabeça! Recolhi meu olhar a um canto de parede, desaprovei aquela atitude. Me pediu que aguardasse, os trabalhadores estavam chegando.
Quase uma hora depois, fui deslocado até o túmulo. Ali dois coveiros se ajudavam. O trâmite era desenterrar vovô, lavar os ossos e acomodá-los em uma caixa de zinco, algum familiar tem que estar presente, era minha missão. Pequena porção de grama e eles já tem acesso a duas tampas retangulares de concreto, talvez 3x2m. Um espaço vazio e mais duas tampas de igual tamanho, eles retiram com uns ganchos de ferro enquanto conversam, combinam a cachaça da hora do almoço e o brega que vão à noite em um morro ali próximo. Pergunta de onde sou, quando aparece o que restou do caixão, das vestes e a ossada. Um deles pega a cabeça pela nuca e a encara, ali sou levado a outro plano, era aquele gesto que eu fazia e beijava sua testa. Entrei em um transe que quando voltei, tudo já estava em um saco de pano. Levado em suas costas como um cereal na feira, o coveiro passa com vovô ao lado, bem próximo ao velório, aquilo foi emblemático. Já com a caixa de metal, ele me avisa: – Dotô, é de onze viu? Disso não posso passar senão fica ruim pra mim que vamos sair de 11h30. Tudo bem! Respondi e voltei ao velório que estava no fim. Ouvi o final de uma fala e um cântico em homenagem até que minha tia pergunta: – Alguém mais quer dizer algo? Estufei o peito e quando ia me pronunciar, sinto algo bater em minha cintura, quando olho para trás, era o carrinho que conduz a urna e o coveiro aponta com o indicador o punho oposto e murmura: – Olha a hora! Ao invés da homenagem, digo que era chegada a hora. Aquilo me engasga até hoje, eu devia ter falado...
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 06 de novembro de 2021.
Concordo, algumas pessoas poderiam ser eternas, e na despedida de painho, no meu caso foi a música não cantada, ele sempre falava quando em vida, queria que a gente cantasse, Sorrir (Djavan). Hoje quando dói a saudade é nela que penso, e também nos bons momentos.
Isso mesmo!
Meu pai sempre diz:
Palavra dita, flecha atirada e bofetada, depois que se vai, ninguém mais faz voltar; a propósito, eu também tenho uma palavra não dita, quando do sepultamento de minha mãe, onde a garganta travou, e não consegui dizer.
Meu pronunciamento seria:
- "Muitos fazem analogia da vida com um trem que para em cada estação e novos passageiros se revezam; também com um livro, onde cada dia é uma página em branco que é escrita, o até mesmo com uma escola, onde vamos evoluindo e adquirindo conhecimento a cada ano letivo; mas, o meu entendimento de "vida", e que seja um presídio, sim! um presídio onde temos vários colegas de cela, e a cada um…
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