Saio por aí, sem destino algum. Não é loucura a não ser que esta seja a busca pelo desvendo dos segredos da existência humana. E o vagar pela cidade nos proporciona topar com seus sujeitos, personagens anônimos que vão tocando a vida no redemoinho dos centros urbanos buscando encontrar seu lugar, no trabalho ou no ócio, cumprindo o que acha que seja sua prestimosidade a sociedade.
Dia desses, parado em um sinal de trânsito ao lado da Vitamilho (antiga fábrica São Braz), após ver o malabarismo de um artista de rua em contraste com jovens tentando livrar algum trocado limpando para-brisas dos carros e outros pedindo “uma moedinha”, lembrei de um pedinte antigo que desde a adolescência, ali no bairro da Liberdade, não se ocupava em outra coisa a não ser pedir no semáforo. Dizem que era uma criança bonita até que um porco o atacou mordendo sua cabeça e um dos braços. O ruidoso ataque suíno causou a atrofia de metade do rosto, com o olho bem diminuído e boca rasgada mostrando alguns dentes na lateral; o braço (esquerdo) mutilado definhou, junto ao corpo sustentando uns restinhos de dedos inúteis. Não conseguia falar, balbuciava alguma coisa com dificuldade ao tempo que estirava a mão direita com unhas grandes, sem asseio, pedindo esmola em clemência aquela situação. Ouvi de várias pessoas que aquele gesto era de piedade cristã. Estava ali de dia a noite e de repente desapareceu. Segundo um limpador de para-brisas, ele teria falecido. A primeira vez que vi aquele moço foi em minha infância.
O filósofo francês Henri Lefebvre defendia que a cidade emite e recebe mensagens e na linguagem codificada das ruas há um mundo de possibilidades e interações. Decifrá-las é o que constrói o cotidiano, materializando nas práticas diárias e vivência dos lugares, a partir daí enxergamos uma idiossincrasia em cada praça, parque, nas ruas e esquinas, como marcas indeléveis daquela geografia urbana. E por falar em bairro da Liberdade, como não reparar um cidadão de quase cinquenta anos, forte, alto, rosto redondo, sorriso bisonho, camisa e bermuda surrada, tênis com a meia na canela, portando sempre um boné na cabeça e um apito de guarda de trânsito na boca. Está sempre a postos em todas as manhãs no canteiro da Av. Almirante Barroso, quase na linha do trem. Ele espia de soslaio o sinal e quando o verde acende, dá um silvo leve e longo para avisar aos motoristas que o caminho está livre. Aquele cruzamento com a Prof. Almeida Barreto é bastante complicado, veículos surgem de todos os lados.
Não entendo a ignorância de alguns motoristas que o xingam com os mais cabeludos palavrões, como que aquele homem estivesse fazendo algum mal. O chamam também de doido, louco, para se ter ideia do nível de desapreço. Por que a irritação com o nosso amigo do trânsito que está longe de ser autoritário? Bem, o observei por inúmeras vezes até que em um sábado, fui até o velho Dudé dos bodes, na Feira da Liberdade, queria comprar coxão e costela fresquinho, estava na companhia de Diona Diana minha mãe e minha avó Dona Lourdes. Estacionei o carro, ali estava o homem do apito; me ajudou na manobra acenando através dos retrovisores. Na volta, não aceitou dinheiro, disse que não recebia de ninguém, gosta mesmo é de ajudar. Comovente a generosidade desse cidadão. Dias depois descobri seu nome: Eliezer e também seu apelido: Zé do Pinto (me parece que ele não gosta!). Mora com a mãe ali próximo da rua Martins Júnior, não sei se possui algum auxílio do governo.
Certa vez, nas primeiras horas da manhã em uma sexta-feira da Paixão, parei naquele sinal, que estava só com a luz de alerta acesa. Ele, Eliezer, com desenvoltura, auxiliava o tráfego até a chegada da superintendência de trânsito. No outro dia estava eu ali novamente, baixei o vidro, fiz sinal com o polegar e ele se debruçou na janela. Eu disse: “– Vi você ontem ajudando aqui, os sinais sem funcionar, valeu camarada, eu agradeço”. Garboso, ele respondeu: “– Se não fosse eu, ia ter um monte de batida aqui”. E completou: “– Meu aniversário é quarta, tu não quer me dá um chaveiro não, do Treze?”. Na hora! Respondi como um bom trezeano. Pode esperar. Um dia antes passei na lojinha do Treze FC e comprei um chaveiro emborrachado, foi o presente de aniversário dele. Sempre que passo por ali, logo o procuro nas sombras das algarobas e lá está ele prestativo, generoso, amigo e extremamente simples. Graças a Deus que a truculência de ignorantes jamais o intimidou.
Ali, naquele sinal de trânsito, Eliezer se sente útil, dando sua importante colaboração a sociedade e transformando aquele lugar em seu mundo. Vida longa a ele, personagem de Campina Grande que em sua simplicidade nos dá uma lição de vida. Em minhas andanças por aí quero continuar observando seu prestimoso mister, grande Eliezer!
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