“Eu comparo esta vida
à curva da letra S:
tem uma ponta que sobe
tem outra ponta que desce
e a volta que dá no meio
nem todo mundo conhece”
(Pinto do Monteiro)
O MEU GOSTO pela cantoria começou de maneira bem espontânea um pouco antes dos dez anos. Havia uma mercearia em minha rua e nela o som ambiente era composto por desafios de repente. À meia altura, o estalar das cordas na viola vinha de um rádio que Seu Joaquim mal conservava encimando uma velha geladeira. Daquele ambiente, lembro da cantoria e da névoa produzida por insistentes baforadas de um malcheiroso cigarro pé-de-burro. E eu, ali, sentado à calçada ouvindo e admirando. Não esqueço de uma fita do poeta Zé Laurentino cujo poema que eu mais esperava era ‘O mal se paga com o bem’.
Já com meus quinze anos, comecei a ganhar o mundo voando baixo por essas estradas, caminhos antigos de onde eu só ouvia falar. Meu Tio avô João José de Oliveira – o Joãozinho – me fez conhecer um bom quinhão da Parahyba (incluindo parte de Pernambuco e o Seridó do Rio Grande do Norte). Representante comercial que era, em alguma proporção comparado aos antigos caixeiros viajantes, conhecia lugares, vilarejos, festas de padroeira, bailes; tocava violão (um dos companheiros de viagem), tinha namoradas (as tais primas das quais muitas conheci). Aprendi o cantar de alguns pássaros, algo sobre a fauna e a flora dos sertões, tive minhas “primas” e uma delas era de Teixeira, onde nos hospedávamos.
Teixeira compartilha com municípios como São José do Egito-PE, Itapetim-PE e outros o “berço da cantoria de viola”, tamanha é a fartura de violeiros, celeiro de poetas cantadores, admiradores e eventos principalmente nas feiras livres como também na zona rural inspirados pelas escarpas da paisagem, vaqueiros, centenárias fazendas e a arte do fazer do povo sertanejo.
Certa vez, fomos para uma cantoria com um amigo/irmão de Tio Joãozinho, o Assis de Berto, que parte da família é oriunda de Teixeira. Animado que era, ficou sabendo do evento na noite de um sábado e nos convidou para essa noitada no vizinho Itapetim, no outro lado da divisa estadual com Pernambuco. Ao todo eram oito pessoas e o dilema foi de quantos carros iriam. A época, as leis de trânsito eram menos rigorosas e Assis teve a ideia de levar três pessoas dentro de sua caminhonete D20 e o restante na carroceria, de preferência todos deitados para que não chamassem a atenção, e assim seguimos viagem. Na carroceria fui com um primo, nós dois com nossas namoradinhas e uma amiga. O caminho entre municípios era de um calçamento que não dava confiança, para lá e para cá na pista livrando os buracos, de braços dados, sentíamos o perfume um do outro. Nos enamorávamos. Alguns beijinhos que dávamos, pareciam estrelas, daquelas mesmas do céu estrelado nos cintilando de paixão, o que me fez, hoje, lembrar os versos do poeta Mauro Luna: “Sob este céu, sobre esta Serra/ Da Borborema, onde transluz/ O luar, banhando a minha terra,/ Um sonho de oiro me seduz...”.
Na entrada de Itapetim, tomamos o rumo de uma fazenda onde o evento se desenrolaria. Mais alguns minutos e chegamos. Ajudamos as meninas a descerem da carroceria, isso no terreiro da fazenda iluminado por gambiarras e uma fogueira que esquentava aquela noite fria do chapadão da Borborema. Um dos poetas repentistas lembro bem que se chamada Louro Branco, achei muito curioso o seu nome, o que fez a tinta do tempo escrever em minha memória.
Da fazenda não me recordo o nome, sei que seu dono era muito respeitado e seus ancestrais povoavam aquelas terras por quase dois séculos. Muito bem cuidada, tinha um belo jardim de onde eu colhi uma rosa cheirosa que só ela e dei à flor da minha noite, que sorriu e me beijou. Com meu blusão jeans escuro tentei aparar seu frio e a poesia dava o tom. Em um braseiro, um quarto de boi e um bode despertavam nosso apetite. Uma dose de cachaça (só uma) tomava com gosto.
Voltamos perto da meia-noite muito felizes. Na carroceria, ela confiou sua cabeça ao meu ombro e dormiu um soninho. Em Teixeira, deitado em uma cama com colchão de palha, às vezes punha o braço por debaixo do travesseiro tentando reviver na mente aquela paixão primaveril. Tem dois dias que da minha varanda vi um céu tão reluzente e estrelado que com ele trouxe ao presente reminiscências que jaziam no fundo da alma.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 25 de maio de 2024.
Que lindeza!
Professor Thomas, você sempre nos trazendo boas lembranças de um passado não muito distante, mas muito feliz.
Lembro que na Rádio Caturité tinha um programa de violeiros que ia ao ar todas as tardes, a partir das 18:00h. Confesso que nunca gostei, mas me admirava com aquele trocadilho de palavras, e aquela emoção dos repentista em fazer desafios com "motes" estranhos e difíceis. Muito obrigado pela recordação.