SANTINO. MENINO QUE NASCEU nas margens tortas da sangria de um açude a certa distância do fim da cidade. Mais do que “ponta-de-rua”, foi para ali que a prefeitura – a propósito de se inserir no desenvolvimento da Sudene e se colocar como moderna – escondeu parte de sua miséria tangendo aquela massa crescente de desassistidos, dando um pequeno suporte em madeira, zinco e tudo de mais de quinquilharia que era possível carregar dos velhos galpões da prefeitura. A ordem era “limpar” o terreno para novas ocupações e essa horda de infelizes que se virasse de alguma maneira.
Periferia que foi forjada no trabalho em pequenos roçados, trabalhadores da fábrica que bebe as águas do açude; chapeados, gente que faz todo tipo de bico para sobreviver. O principal arruado do lugar tem catorze casebres, uns em madeira outros em taipa. Ali é conhecido com o pejorativo nome de beco do ‘Frejo’, isso porque a maioria das construções abrigava bares, cabarés, locais onde o carteado e o bozó corria solto. Foi nessa realidade de promiscuidade e vulnerabilidade social que nasceu Santino, o mais novo de onze filhos (terceiro do mesmo pai). Vivia a insignificância de onde morava, uma pequena ladeira com uma ravina que quase dividia o arruado em dois. É que a chuva vem com força, mas a população é teimosa e volta sempre para o mesmo lugar – como se houvesse opção.
Com cinco ou seis anos, com belo sorriso e face angelical, Santino passou a assistir uma aula ofertada por uma vizinha para aqueles meninos pobres, eram suas primeiras letras. Naquela época, houve um surto de cólera que assolou toda a região e a população do centro da urbe utilizava as rádios para vociferar todo tipo acusação, condenando o que eles chamavam de ralé do morrinho do açude, culpando-os de ter contaminado aquelas águas e espalhado a chaga que levava almas diariamente. – Mãe, passou um homem de carro e me chamou de ralé. Disse Santino. – Deixa estar meu filho, deixa estar.
Os meses se passavam e a cólera não cessava, até que a mulher do prefeito fez uma cota na igreja e convenceu o padre a construir um cruzeiro em invocação a São Sebastião para que o mal acabasse e o erigiu na saída da cidade, em um serrote do lado oposto ao tal morrinho do açude. Entre os dois estava o cemitério dos moribundos, terras amaldiçoadas que aqueles populares tinham que pisar diariamente.
Na precária escola, o pequeno Santino alheio ao que estava acontecendo, é puxado para um canto com algumas tábuas por dois garotos mais velhos que aproveitaram a ingenuidade daquela criança para brutalmente mudar seu destino. Sua mãe não deu atenção ao pouco de sangue na roupa do menino; já o padrasto, quando viu aquele algodão sujo de tinta encarnada, esperou só a primeira madrugada para tapar a boca do inocente por alguns instantes e depois, sem nenhum remorso, deitar o menino junto aos outros. Dos olhos do garoto algumas lágrimas caíam e eram iluminadas pelo esplendor da lua cheia que invadia o ambiente pelas frestas no telhado.
Os acontecimentos se uniram a toda sorte de dificuldade. Em desvantagem com relação aos seus irmãos maiores, quase sempre tomavam seu quinhão de comida e a fome o acompanhava. Raquítico, vivia a tropeçar nas próprias pernas, desajeitadinho que era. Certa vez com seu pai, parou em um bar e presenciou uma discussão entre ele e o atual padrasto que desferiu uma punhalada no pescoço, assassinando seu pai. O real motivo da discussão tinha sido a ação nefasta do padrasto e a vingança não se consumou. Sem entender direito tudo o que se passava, sequer o que era a vida, Santino criou seu próprio mundo, um mundo-paralelo em que nada se parecia com a realidade. Sem a atenção devida, passou a perambular no mato comendo frutinhas que encontrava. Muitas vezes o menino era visto no balde do açude balançando as perninhas, outras vezes ele se equilibrava entre velhos tijolos com as mãos estiradas, sempre cantando com a vozinha fina um cântico qualquer. Uma vizinha viu de sua janela o garoto ao longe e exclamou: “– pobre miserável, tadinho. Sem ninguém que o acuda, é capaz de morrer “do cola” brincando nesse açude”.
Meses depois, graças a São Sebastião, a peste foi embora (no morrinho do açude, ninguém acreditava na profilaxia) e o menino Santino foi encontrado boiando num recanto do açude, comovendo a comunidade em que foi invisível. Não foi enterrado no alto santo. Um cortejo saiu do Beco do Frejo formado por prostitutas, sua antiga professora, alguns bêbados, vizinhos, dois de seus irmãos e sua mãe, que jogou a última pá de terra fria na cova cavada defronte ao cemitério dos moribundos.
Santino. Um menino anjo tão puro que nem sequer foi consciente da própria desgraça em que viveu. Um menino Deus, como tantos outros, com nome santo, criador de seu próprio mundo onde lhe era possível existir.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A União em 24 de fevereiro de 2024.
Mundo cão esse. O progresso anda de mãos dadas com miséria. Que esse texto não se transforme apenas em lágrimas, e que ele chegue ao coração dos valores de quem pode fazer algo por Santino: todos nós.
Eitaaaaaaaaa que essa crônica foi pesada, acho que caiu um cisco no meu olho.
Vai em paz Santino, teu anjo guardião te conduza ao mundo maior, para que no próximo retorno, tenha uma vida melhor.
Afinal, é a misericórdia Divina que permite aprendermos com as várias existências, quer seja na abundância, quer seja na carência, tudo é um aprendizado.