Eu sentava sempre na mesma cadeira, uma ponta de mesa após a porta, de frente a pia de lavar e de costas para a velha geladeira. Ela ali, à minha frente, debruçada na pia, lavava a louça do café. Enquanto eu bebericava mais uns goles daquele néctar vital para nossas vidas, no rádio, o locutor tentava – com certo esforço – animar aquela manhã fria de sábado.
Sua formosura, real ou imaginária, condensava os meus maiores sentimentos e povoava minhas ideias com uma volúpia sensível e extravagante, lasciva e também terna. Seu nome de tão miúdo, poderia sair com um sussurro, sua exegese é uma verdadeira composição que combina a geografia do seu ser com as vogais que aformoseiam sua delicadeza, concebendo uma poesia de carne, alma e sons. Vez por outra, virava o pescoço e me espiava. Sorria com uma profundidade que nem Calíope um dia conseguira, seus olhos e uma leve torcida no cantinho de boca, flagrara de mim um olhar de desejo que a contemplava como uma musa. A fumaça do café fluindo da xícara na altura da boca, criava uma cortina aconchegante, como a maciez de um lençol de linho...
Põe a mão na cintura, causando um pequeno levante no vestido, dando ainda mais formas ao corpo; uma sintonia química, amorosa, poética nos envolvia cada vez mais, quando sua mãe avisa que vai à mercearia na vizinhança comprar alguma coisa: alho, limão, que importa? Não demoraria mais que cinco minutos e ao fechar o cadeado, era aberta uma passagem secreta para outros mundos. Ela solta de imediato o que falta da louça e vem em minha direção sem sequer piscar os olhos. Os poucos metros entre a pia e a mesa, pareciam muitos, n’um caminhar suave e intenso, mise en scène em câmera lenta, como vemos no cinema. As listras de seu vestido me envolvem como tentáculos. O esperado beijo entre olhos fechados e abertos, na sensação de comprovar o que estava realmente acontecendo, unia com mel de jandaíra nossas bocas, lábios, escorrendo sobejo pelo pensamento.
Na tentativa de correr para o quarto, ela insistia que não tínhamos nada mais do que cinco minutos! No caminho fomos tomados por um transe gerado por seres divinos e fantasmagóricos; palhaços e bruxas faziam tudo escurecer e quando percebemos, estávamos em um redemoinho que nos movia rapidamente para o céu; sorrisos e caretas, uivos melancólicos e gritos giravam esse caleidoscópio de seres mágicos e mitológicos; atônitos com tudo aquilo, somos puxados para o meio desse escuro furacão, apertando-nos de maneira tal que quase nos tornamos um só. O brilho e a intensidade do seu olhar eram marcantes e penetrava minha alma como flechas incandescentes n’um frenesi sublime. Unidos, atônitos, extasiados, muito felizes, escutamos o chacoalhar das chaves a abrir o portão. É quando o furacão aterrissa em seu quarto, diminuindo rapidamente o girar, e os seres míticos deixaram no ar apenas uns misteriosos sons ao romper a fronteira dos mundos... A pouca luz que conseguira transpassar a cortina amarelada parecia agora ser a única testemunha daquele abraço, daquele beijinho, daquele olhar, sempre intenso.
– Mãe, a senhora esqueceu o detergente?
E ali estou eu, com o olhar distante nas frestas de luz da janela, sou despertado pelo diálogo entre mãe e filha, absorto que estive em uma viagem transcendental levada pelo amor e pelo desejo. Mas tudo aquilo parecia ser tão real que bem que poderia ter acontecido.
– Mãe, estou toda molhada, vá comprar o detergente vá.
O cadeado se fecha, agora meu olhar felino se perde nela. Sussurro seu nome, ela olha para mim da mesma maneira que imaginei, hora de transformar em realidade meus devaneios? – Ou meu amor, estou toda suja, molhada, descabelada. Deixa eu terminar aqui e tomar banho que a gente conversa.
Em desprezo ao seu ato seco, antirromântico e protocolar, pus mais uma xícara de café e me propus a contemplar a sua fumaça, com a imagem dela vestida de listrado ao fundo, e voltei a sonhar.
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