É ENTRE AGOSTO E SETEMBRO curiosamente no inverno, mas por aqui praticamente não há mais chuva, então não há problema algum. Uns garotos se juntam, conversam. Os mais velhos carregam consigo a lembrança de quando a época se inicia e a arte do fazer, estavam ali para brincar e repassar aos mais novos a tradição. Havia um certo desassossego em seus pais porque eles tinham que andar por algumas ruas, quarteirões à fora. No subúrbio, a maioria das vezes se usava a folha de coqueiro e não o bambu, artigo sempre mais difícil, apesar de mais resistente. Ele enverga e não parte, mas por essas bandas não se via uma touceira sequer, melhor nem querer insistir.
Um desses meninos sobe no coqueiro para retirar uns galhos mais grossos e maduros da grande folha, havia também os que aproveitavam as palhas despejadas nos monturos, por ter desgarrado do alto da planta ou mesmo que restou dos festejos juninos. No meio daquelas folhas, há um talo firme, amarelado; justamente ali onde minha vida começa. Com uma tampa de garrafa, se raspa a folha do palito e se livra da ponta, sempre mais fina, que não serve, frágil não aguenta o repuxo do vento. Com o auxílio de linha dez e mãos ágeis, outro palito com um terço do tamanho é fixado formando uma cruz. Mais abaixo, paralelamente, se põe outro palito do mesmo tamanho, usando a linha enrolando bem fixo. Ali meu esqueleto está quase pronto, e minha ansiedade cresce.
É dado um nó na ponta de cima, e a linha desce em sequência para as pontas dos outros palitos, compondo uma forma geométrica de seis lados, ela serve para receber em uma das faces o papel de seda colorido, cortado com aquele mesmo traçado com tamanho maior em um dedo para ser dobrado no fio e colado, ali é a minha identidade, minha camisa, minha roupa que usarei em praticamente toda a existência. Papel de seda tem das cores mais variadas, mas os garotos, como verdadeiros artistas, saem cortando e colando pedaços combinando o colorido em listras, quadrados, formando nomes e dão todo o ar de criatividade. Alguns escolhem reproduzir seu time de coração e assim por diante.
Montado, amarradinho e vestido, é a hora da rabiola, rabichola ou rabicho. Em uns três a seis metros de linha esticada (vai depender do tamanho, quanto maior se é, maior a peça construída) são afixadas fitas feitas de plástico. Abre-se toda uma sacola com uma tesoura, enrola-a de ponta a ponta formando um rolinho e depois se corta tiras de um dedo de largura, os fitilhos ficam grandes e vistosos. O nozinho que se faz na linha, vai se espaçando até o fim e a criatividade também é demonstrada no rabo, quanto mais cores as sacolas tiverem, mais enfeitado vou ficar. Por fim, é feito um cabresto unindo a ponta superior e a da rabichola, uma espécie de arco onde se une a ponta da linha, o que vai me fazer ficar inclinado e dar início a brincadeira. Antes disso, dependendo do poder aquisitivo, se compra um ou até dois tubos da linha 10, cada uma são quase quinhentos metros.
Como base para a linha, sempre é utilizada uma lata de leite ou farinha láctea sem a tampa, para que os dedos pudessem se apoiar dentro e aguentar a força dos ventos. Tudo pronto e amarrado, é hora de ir para a rua. O anseio da garotada é imenso e o meu aumenta ainda mais. Afinal, para ganhar os céus, tenho que contar com a habilidade do meu dono para me livrar dos fios elétricos da rua e das árvores, de outras vezes já morri de tristeza, ou por se enganchar em alguma coisa e nisso ser sacudido até não servir para mais nada ou mesmo um bolo de linha me envolver n’um fio junto ao poste, ficando ali frustrado como os foguetes da Nasa que sequer chegam ao espaço, desperdiçando todo o trabalho e a ansiedade do projeto. Ali, enganchado, com chuva e sol definhava até não mais existir.
Mas não desisto, nem os meninos, e passados os entraves, ia subindo aos céus, enxergando tudo do alto, cada casa, cada quintal, o horizonte, sempre ganhando linha e balançando, exibindo minhas cores. Tanta gente olhava pra cima aparando o sol com a mão, me admirando. Vejo camaradas dividindo comigo o céu, afinal é nosso momento, época das pipas. Na Parahyba nos chamam também de coruja, mas nunca gostei do apelido. Pipa dá ideia de vida, de cores! Acontece aqui e acolá de garotos mais velhos passarem cerol na linha, mistura de cola e vidro para cortar as outras em um duelo terrível, e assim mais uma vai embora, a molecada corre atrás, muitas vezes não consegue resgatar. O garoto sacode a linha como a desenhar um ‘Z’ no ar e eu desço vários metros, para depois que me darem mais linha, subir triunfante, é o ‘desbicar’. Quando me dão toda a linha existente, o menino se emociona e diz: “batizei minha pipa”, escolhendo meu nome. Já fui Chico, João, Ciço, Águia...
Voar, voar, subir, subir, ser abraçado pelo lindo manto dos céus e trazer alegria para a gurizada. As gerações passam e vou resistindo, no meu cantinho, ano a ano, fazendo a festa, marcando a infância junto aos piões, bolas de gude e tudo que nunca deverá se acabar.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A União em 6 de maio de 2023.
Parabéns tomas
Lindo texto, lembrou muito a minha infância
Parabéns, Thomas.
Belíssimo texto, prosa poética e histórica.
Eitaaaaaaaaa professor Thomas!
Tá cada dia mais difícil de ler sua crônica e não se emocionar, pois elas sempre trazem um pouco de história, de nostalgia, de boas recordações; e com essa não foi diferente.
Este seu "relato de uma pipa", é na verdade a receita da felicidade, uma felicidade que não encontramos jamais nos dias de hoje.
Lembro que na nossa infância, cada brincadeira tem a sua época específica, e como se fosse uma árvore, que dá seu fruto em determinada época do ano, e depois se guarda para a próxima safra. assim, tínhamos na cidade toda, sem nenhuma comunicação entre as demais crianças, a época da pipa, da bola de gude, do ferro de ABC, do banho d…