Caminhando na prainha, trecho do estuário do Rio Paraíba bem frequentado em Lucena, ouvi uma voz cantando: “Não vá pro mar sem canoa/ Pra não morrer na maré/ Não vá, não vá/ Deixa de teima mulher”, voz feminina e lamuriosa. Fui para uma entrada de mangue e encontrei uma senhora, pano amarrado na cabeça, ossos da face bem salientes, assim como um punhado de dentes curvos, pele bem queimada do sol; vestes molhadas e um cesto. Eu sorri, ela também: “– Não ligue pra ‘véa’, a ‘véa’ veio catar uns mariscos no mangue”. Perguntei pela música, ela respondeu: “– Ah meu ‘fie’, de música e história a ‘véa’ sabe ‘derna’ de criança. Minha mãe, vô, tudim contava cada coisa que você só vendo. Mas tá fazendo o quê sozinho, tão longe do povo lá do bar?” Respondi que estava caminhando a esmo, conhecendo o lugar e pensando nos tempos da colonização, indígenas e europeus por essa região. Ela disse: “– Tá certo. Você é novo e tem o coração bom, mesmo assim cuidado com o Pai do Mangue, você pode se perder”. Com quem? Qual é seu nome? Questionei. “– O nome da ‘véa’ é Da Guia. Pai do Mangue é quem toma conta disso tudo. Não fosse ele, meu povo não tinha o que comer”. Afirmou enquanto pigarreava. Fiquei a pensar.
É bem verdade que é inerente a todas as etnias e culturas ao longo dos tempos, um patrimônio de tradições que vão sendo, geração em geração, transmitidos pela oralidade e perpetuados (e conservados!) pelos costumes. É o que foi denominado pelo arqueólogo inglês William Thoms de Folclore, que seria em suma a sabedoria do povo. Nosso folclorista maior, o Câmara Cascudo disse que esse patrimônio “é milenar e contemporâneo. Cresce com os conhecimentos diários grupais, domésticos ou nacionais”. Pe. Antônio Vieira dizia que o medo é crédulo e nesse espectro, difundiu-se pela humanidade as assombrações, visagens e superstições, muitas vezes na tentativa de explicar o que não se conseguia. Especificamente no Brasil, no pós 1500, tivemos uma relação entre esses mundos místicos de origem nativa, européia e africana, ora misturando-se ou equivalendo-se. Para Cascudo, tudo o que se parecia, iria se irmanando, permutando valores equivalentes. É exatamente por isso que vemos a curupira, caipora e a comadre florzinha tão próximas em características e tão distantes geograficamente nos rincões do Brasil.
Mas, e o Pai do Mangue, dona Da Guia? “– É um velho de chapeuzão, de barba, dá pra ver a fumaça do fumo. Já soube dele dá pisa em pescador; se matar bicho novo ou fêmea pejada, ele pega”. Não encontramos facilmente essa lenda em outros estados, é o que Cascudo afirmou como mitos locais, pois existe em zonas adequadas e propícias à sua ecologia, nesse caso, a do mangue com suas árvores com raízes aéreas, por sobre o solo argiloso, formando um ambiente fechado, inóspito e um tanto sombrio, mas que propicia fartura: caranguejo, siri, aratu, amoré, camarão, marisco, sururu, ostra, etc.
Ao longo dos anos, recolhi relatos do Pai do Mangue da aldeia Tramataia (ouvindo as índias marisqueiras) no estuário do Rio Mamanguape (em Rio Tinto) até a Barra do Gramame, no Conde. Sendo mais forte no estuário do Rio Paraíba, desde o Porto do Capim até a área de Costinha e Forte Velho. Soube que na periferia do Recife se falou de um Pai do Mangue, mas com característica totalmente distinta. Lá na Bahia escutei de um pescador a história da Vovó do Mangue, lá na Baía de Todos os Santos (na barra do Paraguaçú), com fortes ligações com Nanã, orixá dos mangues e pântanos.
O Pai do Mangue é quase sempre visto como um senhor de certa idade, pele trigueira, barba farta, voz grossa, assobio fino, chapéu de palha, roupa de pescador, um samburá (cesta de palha) na mão ou costas, pode ser uma luz que acende e apaga à noitinha, há quem já viu andar na superfície das águas. É agradado com fumo e não admite desrespeito, palavrões, algazarra ou dano ao mangue sob pena de fazer pescador se perder por dias ao aparecer como animal ou criança pedindo ajuda, perdendo-se no alagadiço. Seu Manoel Silva contou que o Pai do Mangue andou com seu avô na canoa, ele voltava com seis cordas de caranguejo, mas o ser mítico pediu que o deixasse mais à frente. O Pai do Mangue agradeceu e sumiu da canoa entrando no mangue tão rápido que nenhum homem passaria por aquelas raízes e galhos daquele jeito. Desde então, a média de cinco, ou seis cordas aumentou para dez.
É muito interessante ter contato com pessoas que jamais se conheceram, porém, carregam em seu cotidiano histórias tão fortes que vão costurando o enredo de suas vidas.
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* A gravura 'Pai do Mangue' foi publicada no jornal A União em seu caderno Almanaque, na matéria 'Causos, lendas e assombrações populares, assinado pela jornalista Lucilene Meireles.
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